Thiago de Mello: o filho da floresta

Meu primeiro impulso de pensamento hoje, 15 de janeiro de 2022, foi: ‘amanhecemos sem Thiago de Mello’. Só que não. Porque este poeta amazonense continua vivo nas palavras , em versos repetidos que ontem ecoaram pelo Brasil e pelo mundo, e no tanto que se disse sobre ele. Continua presente também no rosto marcado e no rastro do seu jeito de caminhar.

No prefácio da 3ª edição de seu livro Amazonas, Pátria da Água escreveu: “Um temor grande se ergue das funduras das águas e percorre o verde corpo ferido da Amazônia: a nossa floresta está, devagarinho, tomando o rumo do fim. Confesso que escrevo estas palavras arrepiado. O que a Natureza levou milhões de anos para construir pode vir a ser destruído dentro de pouco tempo pela insensatez humana: a maior floresta, o mais lindo pedaço verde da Terra”.

Filho da Floresta, protegido das divindades, poeta do Amor e da Esperança. Sentimentos que, aliados a uma profunda consciência, o fizeram mergulhar de corpo e alma na causa pela Amazônia.
Em sua vida, como escreve seu amigo, o jornalista Rogério Scavone, ”tanto observou terras distantes e as belezas da natureza, como testemunhou cenas dramáticas da miséria, da violência e da injustiça (…) em tempos difíceis, que a memória e a indignação não deixam esquecer”.
Leitor entusiasmado do Jornal da Serra, (“quero me valer do teu Jornal da Cantareira para ajudar a vida da nossa floresta”, me escreveu certa vez), recebia os exemplares em sua casa às margens do rio Andirá, em Barreirinha, terra onde se fincam suas raízes. Depois, também online, por aí, porque “no rio Andirá, os tucanos e gaviões bicam a internet, não deixam ela entrar lá em casa” . Em maio de 2008, generosamente, nos ofereceu este texto – poético e matéria primeira que depois ganharia a forma de um poema então publicado na edição original do site :

É UMA QUESTÃO DE AMOR
“A Natureza, a vida na floresta, ensina o homem do Amazonas a ser fraternal, a ser bom, a auxiliar os seus companheiros a realizar alguma coisa na vida que condiga com a necessidade de todos.” (Angelo Bittencourt, meu professor no Ginásio Amazonense Pedro I)

O que é o meio ambiente? É simplesmente uma casa, só que grande já demais. Do tamanho do universo. Dentro dela cabe o mundo, vasto mundo, cabe o sonho mais profundo e mais do que o mundo, cabe o amor que a casa tem.
Amor: dar e receber. A casa gosta de doar. Ela já nasceu sabendo que dar é sempre a melhor maneira de receber. O seu nome é Terra, céu e chão da Natureza, mãe da sombra e do esplendor, do orvalho e do temporal. É a Gaia do mito grego. Já não é mais um segredo que um ser vivo ela é também.
De inventar vida ela vive. Cada coisa que ela cria, pássaro, nuvem, banzeiro, oceano, constelações, a luz do dia e a da noite, é pra dar contentamento a quem vive nela e dela. Mora a flor e o beija-flor, mora o ninho e o passarinho, a paixão e a compaixão, a criança e a desesperança, a ternura e a amargura. Mora o tempo e o contratempo.
Sua invenção mais milagrosa? É o manancial que não cessa. Sua glória e sua festa é ter plantado a floresta: pátria de todas as águas, verde de todas cores. Mãos de mágicos poderes, prontas sempre a bem servir. Voo sereno de garças ensinando paz aos homens.
De gavião e bem-te-vi, de coruja amanhecendo, dando adeus para as estrelas. Do caboclo plantador de maniva pra farinha. Da sardinha ao peixe-boi, da argila escura ao diamante. De boto de olho na moça tomando banho de rio. Do cedro pra cumieira, do mapinguari guardando a raiz da suamuemeira: de tudo a floresta faz um jeito para ensinar a alegria de viver, que se expande florescida no coração solidário.
Mas da multidão de seres que ela gerou, cuidadosa, de todos o seu predileto, o Humano, feito e perfeito das virtudes dos seus verdes, o único a quem deu a prenda de indagar e de escolher, pois o ferrão da cobiça o converteu em maldoso Desumano: animal de riso ímpio, feroz e falso de boca que lhe vem varando o ventre com lâmina envenenada de gás, fogo e ingratidão.
A Terra sabe ser mãe. Queimada e compadecida, persiste fiel à bondade, que é seu destino e dom. De sua dor redivive. Pelo poder que perdura.
Ela te ama e estende a mão, a ti, filho da Floresta, a mais luminosa benção que a Natureza te deu. Dos seus âmagos em brasa, das flores desarvoradas, das asas enlouquecidas, quando anoitece – ouve bem! – , se ergue um pungente clamor.
Não é grito de guariba.
Não é esturro de onça.
Nem silvo de Curupira.

É a mata pedindo ajuda.

A Floresta é a tua casa.
Cuida dela com amor.

Thiago de Mello – (1926-2022)
Na enchente do rio Andirá, 2008

“Não tenho um caminho novo. O que eu tenho de novo é o jeito de caminhar”, um de seus versos que me acompanha pela vida. Que você seja muito feliz nesse novo caminhar. Inté…
Isabel Raposo

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